sábado, 19 de abril de 2014

Propaganda enganosa

(Texto escrito por Murilo Silva, que foi animador cultural, concursado, da Fundação Franklin Cascaes, de 1987 a 1989, e assessor de marketing cultural de 1993 a 1996; O Artigo foi publicado no Diário Catarinense, em 31/01/2009, no Caderno de Cultura, e teve grande repercussão, ajudando no processo de "separação administrativa"- e política -  entre cultura e turismo).
Fonte da imagem: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/franklincascaes/

Os vereadores de Florianópolis apreciaram um conjunto de matérias enviadas pelo prefeito Dário Berger. Entre elas, uma proposta de reforma administrativa, propagandeada como a solução para melhorar os serviços e enxugar a estrutura. O agrupamento das fundações de cultura e esporte à Secretaria Municipal de Turismo, Cultura e Esportes (Setur), compõe parte das medidas. Segundo o prefeito, essas áreas promovem ações complementares, com sobreposição de atribuições, levando a trabalhos em duplicidade. Temos aqui três grandes problemas: o agrupamento das fundações à estrutura de uma secretaria, a submissão de ambas ao turismo e um conjunto ilegalidades aí pendentes.
Somente ignorando as peculiaridades do esporte e da cultura, podemos encontrar alguma relação de complementaridade com o turismo. E a sobreposição apontada, nada mais é do que a contraditória ausência das parcerias e a desarticulação das áreas, ausentes de ações planejadas a médio e longo prazo. Na verdade, o que precisa é ser colocado em prática a inter-relação entre os setores, fundamental para o funcionamento sistêmico e exitoso da máquina pública. E no rol de prioridades aparece a área da educação, onde a cultura e o esporte encontram espaços fundamentais para a execução de ações duradouras a partir de eventos, pesquisas e oficinas. 
     Espero que as autoridades esportivas se pronunciem a respeito. Quanto à cultura, arrisco dizer que seu pretendido retorno à Setur causará conseqüências danosas ao setor. Artistas e produtores culturais desta cidade não poderão assistir calados a esta operação equivocada, contrária à razoabilidade da administração pública e aos interesses da população. Os vereadores, representantes legítimos e guardiões desses interesses, não podem aprovar este retrocesso. Não existe razão que justifique a subordinação da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes à Setur.

Apesar da apresentação de um documento aos vereadores, com mais de duzentas assinaturas – entre artistas, produtores culturais, intelectuais e entidades – formalizando a solicitação de uma emenda para a retirada da cultura do âmbito da Setur, a insensibilidade de nossos representantes aprovou a matéria sem nenhuma alteração. Restou apenas uma vaga e imprecisa promessa do executivo municipal, de que   a Franklin Cascaes teria a sua autonomia garantida, registrada em declaração de voto por um dos parlamentares.
Como quem não acredita na felicidade do belo canto autônomo do passarinho enjaulado, a comunidade da cultura está se movimentando acerca do encaminhamento de ações populares, para combater a ilegalidade que cometeram no projeto aprovado, uma vez que o mesmo não previu a revogação da lei 2647/87, que criou a Franklin Cascaes. Somente com a revogação da mesma, poderiam ter destinado ao órgão de cultura do município um caminho diferente daquele que está previsto em seus estatutos. A ação popular é um remédio constitucional que dá a qualquer cidadão legitimidade para propor a anulação de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa e ao patrimônio histórico e cultural.
A luta pela autonomia da fundação de cultura, apesar de ser ideológica – pois parte da compreensão de que cultura não se basta no mercado –  é também dotada da ampla aquiescência acerca de uma proveitosa racionalidade administrativa. As fundações de cultura sempre apresentaram vantagens operativas diante de secretarias. Em todo o país, ações culturais operadas por prefeituras, quando surgiram de secretarias, ficaram paralisadas pela burocracia pesada e lenta. De direito público, a fundação funciona semelhante à autarquia, tendo corpo funcional concursado, autonomia financeira, orçamento próprio e requisitos peculiares de licitação. A geração de receitas próprias (concessão de espaços, recebimento de doações, venda de publicações, etc.), a realização de permutas e parcerias, e a facilidade de transitar no mercado de eventos e projetos, com mecanismos de captação de recursos junto à iniciativa privada e órgãos estatais, dão fôlego para a ampliação de atividades das fundações. Com hierarquia enxuta e simples, e o número de cargos de confiança reduzidos, o corpo técnico – também pequeno – é formado por agentes culturais, profissionais concursados geralmente especializados em política cultural.
 Sem dúvida nenhuma, a autonomia administrativa e financeira de uma fundação, e de amplo horizonte de articulação com as mais diversas áreas, evita a constituição de uma superestrutura pesada, como geralmente se verifica na organicidade das secretarias. Além disto, se a fundação cultural tiver à disposição mecanismos democráticos de gestão da política cultural, como um Conselho Municipal de Cultura, a entidade cria um vínculo societário extremamente forte, com projetos ramificados e duradouros, livres das incômodas e onerosas descontinuidades, tão comuns nas mudanças de governo.
São muitos os exemplos meritórios de fundação cultural com status de secretaria: Fundação Gregório de Matos (Salvador-BA); Fundação Cassiano Ricardo (São José dos Campos - SP); Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Juiz de Fora - MG); as fundações em Curitiba-PR e Jacareí-SP; e também em municípios catarinenses, como Blumenau, Joinville e Itajaí.
É bem verdade que a atual direção da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes coleciona há quatro anos um conjunto de erros, antipatias e dissonâncias que prejudicam o setor. Não zela pelo patrimônio cultural, não estimula o resgate e a preservação, burocratiza o tratamento com as manifestações culturais tradicionais e desconhece as contemporâneas. Além disto, nada investe em pesquisas e muito menos em publicações. Enfim, o órgão está desconectado do ambiente cultural da cidade. Porém, as direções passam e as instituições continuam, e escrevo aqui em defesa do órgão de cultura do município, que muitos serviços já prestou.
Antes, na Setur, a cultura era uma prateleira de artesanato e folclore, recepcionista das demandas turísticas. Produzia roteiros turísticos e animava convenções, bancando a presença de rendeiras e outras atrações. Apresentações de bois de mamão em palco completavam o exótico cortejo para os nossos visitantes. Este é o modelo de cultura visto pelo turismo, que enclausura tudo na esfera do entretenimento, do espetáculo e do chamado folclore.
Estas ações fatalmente ignoravam a força diversificada do universo simbólico e imaginário, simplificando crenças e costumes, tudo em nome de uma necessidade turística. O conjunto de preocupações culturais era ditado pela demanda do olhar do cliente visitante, e não do cidadão habitante, habitualmente rotulado cordial, pacífico e hospitaleiro. E foi somente em 1987 que a capital de Santa Catarina começou a perceber um esboço de política cultural, quando surge a Fundação Franklin Cascaes, tirando da Setur esta periférica tarefa a serviço do turismo. Desconsiderar agora esta história de conquista, enquadrando a entidade às ações da Setur, num ato impensado e inconseqüente, é retroceder no tempo e no espaço, colidindo na contramão de todas as experiências que deram certo.
Em nenhum lugar do planeta o turismo conseguiu dar eficácia plena ao artigo 4º de seu Código Mundial de Ética, naquilo que tem de mais importante em relação ao assunto: a não provocação da padronização e empobrecimento da cultura. O turismo, quando tratado prioritariamente em relação à cultura – e na Setur foi e poderá voltar a ser – mercantiliza as culturas locais, destorcendo a identidade do habitante anfitrião.
Cultura, acima de tudo, é um direito social básico, um vetor de desenvolvimento econômico e de inclusão social. Portanto, o poder público municipal deve manter a autonomia da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, que deverá atuar de maneira decisiva na elaboração de ações culturais, sem interferir no processo criativo. Ao invés de incorporar fundações, a Setur deveria se empenhar ainda mais no aperfeiçoamento de articulações importantes com a afinada e tradicional parceria da dupla indústria e comércio, estas sim, áreas bastante afinadas com a indústria do turismo. Quem sabe até a Setur poderá fortalecer alternativas que cuidem da saúde de sua ameaçada "galinha dos ovos de ouro", que é o meio ambiente. O turismo deve experimentar parcerias com a cultura, mas – como reproduzimos na epígrafe – com uma cultura viva, praticada cotidianamente pela população e por seus produtores culturais, para então todos juntos cantarem e aplaudirem. 



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