(Texto escrito por Murilo Silva, que foi animador cultural, concursado, da Fundação Franklin Cascaes, de 1987 a 1989, e assessor de marketing cultural de 1993 a 1996; O Artigo foi publicado no Diário Catarinense, em 31/01/2009, no Caderno de Cultura, e teve grande repercussão, ajudando no processo de "separação administrativa"- e política - entre cultura e turismo).
Fonte da imagem: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/franklincascaes/ |
Os vereadores de Florianópolis
apreciaram um conjunto de matérias enviadas pelo prefeito Dário Berger. Entre
elas, uma proposta de reforma administrativa, propagandeada como a solução para
melhorar os serviços e enxugar a estrutura. O agrupamento das fundações de
cultura e esporte à Secretaria Municipal de Turismo,
Cultura e Esportes (Setur), compõe parte das medidas. Segundo o
prefeito, essas áreas promovem ações complementares, com sobreposição de
atribuições, levando a trabalhos em duplicidade. Temos aqui três grandes
problemas: o agrupamento das fundações à estrutura de uma secretaria, a
submissão de ambas ao turismo e um conjunto ilegalidades aí pendentes.
Somente ignorando as peculiaridades do
esporte e da cultura, podemos encontrar alguma relação de complementaridade com
o turismo. E a sobreposição apontada, nada mais é do que a contraditória
ausência das parcerias e a desarticulação das áreas, ausentes de ações
planejadas a médio e longo prazo. Na verdade, o que precisa é ser colocado em
prática a inter-relação entre os setores, fundamental para o funcionamento
sistêmico e exitoso da máquina pública. E no rol de prioridades aparece a área
da educação, onde a cultura e o esporte encontram espaços fundamentais para a
execução de ações duradouras a partir de eventos, pesquisas e oficinas.
Espero que as autoridades esportivas se
pronunciem a respeito. Quanto à cultura, arrisco dizer que seu pretendido
retorno à Setur causará conseqüências danosas ao setor. Artistas e produtores
culturais desta cidade não poderão assistir calados a esta operação equivocada,
contrária à razoabilidade da administração pública e aos interesses da
população. Os vereadores, representantes legítimos e guardiões desses
interesses, não podem aprovar este retrocesso. Não existe razão que justifique
a subordinação da Fundação Cultural de Florianópolis
Franklin Cascaes à Setur.
Apesar da apresentação de um documento aos vereadores, com mais de duzentas assinaturas – entre artistas, produtores culturais, intelectuais e entidades – formalizando a solicitação de uma emenda para a retirada da cultura do âmbito da Setur, a insensibilidade de nossos representantes aprovou a matéria sem nenhuma alteração. Restou apenas uma vaga e imprecisa promessa do executivo municipal, de que a Franklin Cascaes teria a sua autonomia garantida, registrada em declaração de voto por um dos parlamentares.
Como quem não acredita na felicidade
do belo canto autônomo do passarinho enjaulado, a comunidade da cultura está se
movimentando acerca do encaminhamento de ações populares, para combater a ilegalidade
que cometeram no projeto aprovado, uma vez que o mesmo não previu a revogação
da lei 2647/87, que criou a Franklin Cascaes. Somente com a revogação da mesma,
poderiam ter destinado ao órgão de cultura do município um caminho diferente
daquele que está previsto em seus estatutos. A ação popular é um remédio
constitucional que dá a qualquer cidadão legitimidade para propor a anulação de
ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa e ao patrimônio
histórico e cultural.
A luta pela autonomia da fundação de
cultura, apesar de ser ideológica – pois parte da compreensão de que cultura
não se basta no mercado – é também
dotada da ampla aquiescência acerca de uma proveitosa racionalidade
administrativa. As fundações de cultura sempre apresentaram vantagens
operativas diante de secretarias. Em todo o país, ações culturais operadas por
prefeituras, quando surgiram de secretarias, ficaram paralisadas pela
burocracia pesada e lenta. De direito público, a fundação funciona semelhante à
autarquia, tendo corpo funcional concursado, autonomia financeira, orçamento
próprio e requisitos peculiares de licitação. A geração de receitas próprias
(concessão de espaços, recebimento de doações, venda de publicações, etc.), a
realização de permutas e parcerias, e a facilidade de transitar no mercado de
eventos e projetos, com mecanismos de captação de recursos junto à iniciativa
privada e órgãos estatais, dão fôlego para a ampliação de atividades das
fundações. Com hierarquia enxuta e simples, e o número de cargos de confiança
reduzidos, o corpo técnico – também pequeno – é formado por agentes culturais,
profissionais concursados geralmente especializados em política cultural.
Sem dúvida nenhuma, a autonomia administrativa e
financeira de uma fundação, e de amplo horizonte de articulação com as mais
diversas áreas, evita a constituição de uma superestrutura pesada, como
geralmente se verifica na organicidade das secretarias. Além disto, se a
fundação cultural tiver à disposição mecanismos democráticos de gestão da
política cultural, como um Conselho Municipal de Cultura, a entidade cria um
vínculo societário extremamente forte, com projetos ramificados e duradouros,
livres das incômodas e onerosas descontinuidades, tão comuns nas mudanças de
governo.
São muitos os exemplos meritórios de fundação cultural
com status de secretaria: Fundação Gregório de Matos (Salvador-BA); Fundação
Cassiano Ricardo (São José dos Campos - SP); Fundação Cultural Alfredo Ferreira
Lage (Juiz de Fora - MG); as fundações em Curitiba-PR e Jacareí-SP; e
também em municípios catarinenses, como Blumenau, Joinville e Itajaí.
É bem verdade que a atual direção da Fundação
Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes coleciona há quatro anos um conjunto
de erros, antipatias e dissonâncias que prejudicam o setor. Não zela pelo
patrimônio cultural, não estimula o resgate e a preservação, burocratiza o
tratamento com as manifestações culturais tradicionais e desconhece as
contemporâneas. Além disto, nada investe em pesquisas e muito menos em publicações.
Enfim, o órgão está desconectado do ambiente cultural da cidade. Porém, as
direções passam e as instituições continuam, e escrevo aqui em defesa do órgão
de cultura do município, que muitos serviços já prestou.
Antes, na Setur, a cultura era uma prateleira
de artesanato e folclore, recepcionista das demandas turísticas. Produzia
roteiros turísticos e animava convenções, bancando a presença de rendeiras e
outras atrações. Apresentações de bois de mamão em palco completavam o exótico
cortejo para os nossos visitantes. Este é o modelo de cultura visto pelo turismo, que
enclausura tudo na esfera do entretenimento, do espetáculo e do chamado
folclore.
Estas ações fatalmente ignoravam a força
diversificada do universo simbólico e imaginário, simplificando crenças e
costumes, tudo em nome de uma necessidade turística. O conjunto de preocupações
culturais era ditado pela demanda do olhar do cliente visitante, e não do
cidadão habitante, habitualmente rotulado cordial, pacífico e hospitaleiro. E
foi somente em 1987 que a capital
de Santa Catarina começou a perceber um esboço
de política cultural, quando surge a Fundação
Franklin Cascaes, tirando da Setur esta periférica tarefa a serviço do turismo.
Desconsiderar agora esta história de conquista, enquadrando a entidade às ações
da Setur, num ato impensado e inconseqüente, é retroceder no tempo e no espaço,
colidindo na contramão de todas as experiências que deram certo.
Em nenhum lugar do planeta o turismo conseguiu dar
eficácia plena ao artigo 4º de seu Código Mundial de
Ética, naquilo que tem de mais importante em relação ao assunto: a não
provocação da padronização e empobrecimento da cultura. O turismo, quando
tratado prioritariamente em relação à cultura – e na Setur foi e poderá voltar
a ser – mercantiliza as culturas locais, destorcendo a identidade do habitante
anfitrião.
Cultura, acima de tudo, é um direito social básico, um
vetor de desenvolvimento econômico e de inclusão social. Portanto, o poder
público municipal deve manter a autonomia da Fundação
Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, que deverá atuar de maneira
decisiva na elaboração de ações culturais, sem interferir no processo criativo.
Ao invés de incorporar fundações, a Setur deveria se
empenhar ainda mais no aperfeiçoamento de articulações importantes com a
afinada e tradicional parceria da dupla indústria e comércio, estas sim, áreas
bastante afinadas com a indústria do turismo. Quem sabe até a Setur poderá
fortalecer alternativas que cuidem da saúde de sua ameaçada "galinha dos
ovos de ouro", que é o meio ambiente. O turismo deve experimentar
parcerias com a cultura, mas – como reproduzimos na epígrafe – com uma cultura
viva, praticada cotidianamente pela população e por seus produtores culturais,
para então todos juntos cantarem e aplaudirem.
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