sexta-feira, 18 de abril de 2014

Natal Coca-Cola

(Texto de Murilo Silva, publicado no  26/12/2003, no site do Centro de Mídia Independente,
http://www.midiaindependente.org/pt/red/2003/12/270630.shtml, e no Jornal A Notícia, em 24 e 25 de dezembro de 2005, http://www1.an.com.br/ancapital/2005/dez/25/1opi.htm)

Fonte da imagem: http://kibeloco.com.br/


Apresento aqui uma reflexão incomum sobre o Natal e seu simpático velhinho office-boy. A crítica que faço incendeia, com a tocha da história, a imagem do Papai Noel sentado em seu trono de verdades. Porém, esta crítica não pretende apagar a centelha da esperança, presente na aura dominante das celebrações natalinas e expressa nos sentimentos de alegria, amor e amizade. Todos os momentos nesta data são de esperança. Mesmo aquele sorriso infantil dos adultos nas formalidades dos cumprimentos. Ou aquele triste olhar opaco e televisivo da criança pobre, acompanhando as imagens flutuantes dos brinquedos impossíveis. A comemoração natalina, com todas as suas contradições, fortalece a esperança numa vida melhor. 

Muitos não sabem, mas o Papai Noel que conhecemos é o da Coca-Cola. Lembro-me quando descobri que Papai Noel não existia. Tudo bem, o meu herói Capitão América também não. O choque maior foi com duas outras descobertas: o heroísmo do Capitão é a destruição das Américas, e o senhor Noel um prestador de serviços da The Coca-Cola Company. Choque maior levaram as crianças francesas, em 1951, quando em praça pública os bispos de Digione queimaram um Papai Noel de quatro metros de altura. Uma reação à leviana associação da marca do refrigerante aos santos. Afinal, a Coca-Cola é detentora da imagem, mundialmente conhecida e reproduzida, do velhinho de botas pretas, barba branca, com detalhes brancos nas roupas vermelhas. O “velho garoto propaganda” partiu de uma encomenda feita ao pintor estadunidense, Haddon Sundblom, em 1930, época da grande depressão. Somente em 1966 a empresa abandonou a grande recorrência à imagem, e de vez em quando a recupera, como fazem todas as empresas e agrupamentos humanos.  

Trocar presentes no fim do ano é um hábito bastante antigo, é uma prática usual entre os povos das mais diversas culturas, que entendem o ato de presentear um ritual de presságio para o ano novo que se aproxima. Como todas as grandes festas celebradas, o Natal é originário do paganismo. As primeiras festas natalinas aconteceram no Egito e mais tarde, a partir da Grécia, os romanos promovem as Saturnais: festivais que comemoravam o solstício do inverno, com muita comida, bebida e orgia. É comum entre historiadores afirmar o ano 336 d.C. como o primeiro do Natal que hoje celebramos. Até então, a Igreja celebrava a morte (comunhão) e não o nascimento de Cristo. Muitos rituais foram incorporados e adaptados, como a troca de presentes no ato dos três reis magos ao visitarem a manjedoura. Porém, a adaptação do Papai Noel, ao contrário de todas as demais fábulas natalinas, ocorridas ao longo de séculos, me assusta por sua rápida e arrogante consolidação mercadológica inconteste.     

Qualquer abordagem acerca do poder capitalista da publicidade merece a lembrança do filósofo Theodor Adorno, que revelou o caráter da publicidade como o supra-sumo da ideologia, que se transfere com êxito ao efeito mágico das mercadorias no imaginário dos consumidores. O milagre da realização publicitária faz com que o sucesso de sua aparição virtual seja o sucesso de sua comercialização. O que não passa pelo crivo da publicidade não é suscetível de valor, é estranho e obsoleto. A Coca-Cola unificou o conjunto das lendas, desde o deus do inverno na mitologia nórdica à lenda ruralista européia. Babbo Natale, Babbo Gelo, Santa Claus, ou Joulupukin, não importa o idioma, o velhinho é o da Coca-Cola.

O que fazer? Atear fogo no Papai Noel? Talvez, mas somente com a garantia de que o novo velhinho trouxesse um natal de justiça, paz e alegria aos cerca de 800 milhões de habitantes atados à fogueira da miséria e da exclusão social. Um Natal sem Coca-cola.   


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