sábado, 19 de abril de 2014

Poder de Fogo


          
   O FOGO E O PODER
(Artigo de Murilo Silva, publicado na página 145 do livro "Memórias do Abrigo de Menores", de Alzemi Machado, publicado pela Fundação Franklin Cascaes, em 2009)

Andando em lembranças, piso na praia de Jurerê, ainda nacional, com diversas árvores à disposição dos piqueniques à beira mar. Hoje, com tanta sofisticação em volta, usufruir desta regalia da natureza, mesmo sem as aconchegantes sombras, é coisa de banhista farofeiro. Continuando a andança saudosista subo costões ainda santinhos. Um cenário espetacular de rochedo e mar, sol e lua, sem as luzes do imponente concreto, nem a frieza do ferro, do lixo ou do luxo. No impulso da memória ganho a carona dos passeios de canoa no interior de muitos mangues, o mergulho no mar e lagoas hoje proibido, o mergulho na lembrança molhada de tudo aquilo permitido.    

Nasci no bairro da Agronômica e lá fiquei durante 35 anos. Lembro-me da Ponta do Coral, um pedacinho de terra anexado à gigantesca área do Abrigo de Menores, com seus saborosos pés de goiaba, araçá e pitanga e exóticos eucaliptos – majestosos prendedores de pandorga. Lá gerações promoveram encontros, jogos e piqueniques de escolas e famílias, com farofas, bolas, bolos e mamadeiras. Que saudade das peladas nos campos do Abrigo, identificados por números, acho que eram cinco ao todo, e o da “primeirinha” ficava na Ponta do Coral. Saudades das extensas e organizadas hortas cultivadas e colhidas pelos meninos sem famílias, sob a supervisão de seus tutores, os Irmãos Maristas. Saudades do teatro e do cinema, da carpintaria e da sapataria, do galinheiro e do chiqueiro.


Inocentes passeios saudosistas, gostosa brincadeira infantil, transformam-se na revoltosa e insone lembrança do dia 31 de março de 1980. Poderia ter sido a imagem da comemoração dos 16 anos de golpe militar na TV Globo, mas foi algo pior. Seria para mim um domingo como outro qualquer, se não fosse à fogueira criminosa no interior do alojamento do Educandário 25 de Novembro, o nosso Abrigo de Menores.


Desci as antigas escadarias da Servidão Epaminondas bastante assustado com os berros que vinham de baixo. Uma cena terrível, que jamais esquecerei. Rolos gordos de fumaça saíam pelas janelas de forma contínua. A sinfonia do inferno estava ali formada. Sons misturavam-se ao calor do fogo. Labaredas que lambiam e consumiam os parapeitos como línguas de lagartos gulosos, seguidas de estalos da madeira que desabava do interior do prédio. Gritos e muita correria. Pessoas entravam com as mãos na cabeça e saíam segurando objetos, na tentativa de salvar qualquer coisa que encontrasse pela frente. As gaiolas de canários abandonadas nas calçadas, demonstrava o grau de solidariedade dos manezinhos passarinheiros do bairro. Eu, como um bombeiro solidário improvisado, entrei ardido pelo calor insuportável e com os olhos enfumaçados. Cego temporariamente, identifiquei dois quadros com o meu tato apressado. Sai correndo, como um mecenas orgulhoso salvando a cultura pictórica. Somente lá fora percebi que se tratava de dois retratos oficiais, um do Presidente da República Federativa do Brasil, Excelentíssimo General João Batista de Figueiredo, e outro do Excelentíssimo Governador do Estado de Santa Catarina, Jorge Konder Bornhausen, este já chamuscado na testa.


O barulho da correria e dos destroços caindo já diminuía com a ação dos bombeiros que chegaram bem depois de nós, moradores do bairro, internos e funcionários da instituição. Consegui então, diante do silêncio quase sepulcral, ouvir o choro inconformado do querido Irmão Celso, um dedicado ex-administrador do Educandário. Suas lágrimas, impotentes para apagar o fogo, invadiram nossas almas naquele momento. Um incêndio que não deixou vítimas, mas queimou junto com o prédio nossa cidadania. A ausência de uma explicação oficial coerente, além de nos encher de dúvidas, nos vitimou com a perda de um significativo patrimônio do Estado.


Quem estava lá pode perceber algo estranho no ar, além da fumaça. O fogo surgiu, meio sorrateiro, no momento tranqüilo da ausência de pessoas no recinto. Naquele tempo não havia rebelião. De onde surgiu então a centelha? O resultado de um inquérito policial que investigou a criminalidade do incêndio aumentou o espectro duvidoso que ainda assombra o caso. Apesar dos peritos terem encontrado no local derivados de petróleo, e da certeza de início de combustão em mais de um foco, em 7 de abril de 1982, o Procurador Geral do Estado solicita ao Juiz o arquivamento do caso, e em seguida o Estado recebe o seguro.


 Um pouco mais de quatro meses antes do incêndio, precisamente em 19 de novembro de 1979, o Governo do Estado integra o terreno da Ponta do Coral no patrimônio da Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor (FUCABEM), órgão responsável pelo Abrigo de Menores. Dezoito dias antes do incêndio, em 12 de março de 1980, a FUCABEM oferece o prédio como garantia de hipoteca ao Banco de Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina (BADESC), instituição avalista do empréstimo de 132 milhões de cruzeiros junto a Caixa Econômica Federal. O objetivo da operação financeira foi a construção, no município de Palhoça, do Centro Educacional Dom Jaime de Barros Câmara, dois anos após a fogueira do Abrigo.


Abandonado durante anos, aquilo que o fogo havia poupado foi parcialmente demolido, permanecendo apenas pequenos módulos. Seu terreno foi retalhado e negociado. A entrada da Ponta do Coral – em 10 de novembro de 1980 – foi cercada por arames farpados e portões com cadeados. Um mês e seis dias depois, foi vendida para a empresa Carbonífera Metropolitana, que mais tarde promoveu algumas “benfeitorias” no local, como a derrubada dos pavilhões que abrigavam a antiga lavanderia do Abrigo de Menores – antigo depósito de óleo durante a I Guerra Mundial –, cortou todas as árvores e substituiu a antiga cerca por um muro cinza salpicado de vergonha.


Para mim, o incêndio no Abrigo de Menores foi um marco de destruição da cidade, que entrou há pouco mais de 25 anos na lógica imobiliária insensata, acinzentando nosso verde e esverdeando sua moeda.                                                

Um comentário:

  1. Murilo, tudo bem? Pois é, estava lendo o que escreveu sobre o incêndio do Educandário e te digo uma coisa: foi sim criminoso. Eu estava lá, eu era interno.Naquele domingo pra nossa curiosidade, aqueles meninos, como eu, resolvemos não sair pra um passeio (meio estranho) promovido pela direção da instituição bem cedinho. Ficamos num grupo no dormitório, arrumando as coisas, pois a maioria dos meninos de minha turma trabalhava. Os que foram passear eram da primeira e segunda turma e parte da terceira. Seu Adilson ( ainda vivo) e ex- interno do local era o Monitor daquele dia. Muito estranho, estranho mesmo, aquele incêndio ter ocorrido e derrepente e sem motivo algum. Quando estávamos reunidos no dormitório, o seu Mazico, dono de uma venda na frente do Abrigo começou a gritar lá de baixo dizendo que havia fumaça saindo do último andar. Corremos, chamamos o seu Adilson e ele arrombou a porta e nada pôde fazer. O que mais me chamou a atenção foi a presença rápida de todas as autoridades naquele domingo,incluindo até o Jorge Bornhausen, o mesmo que queria tirar os menores dali. Estranho, né? Eu perdi tudo, roupas, documentos, fotos, dinheiro e saí com a roupa do corpo. Fomos alojados lá perto do teatro por alguns meses. Passados esses anos todos, e, com objetivo dos governantes em acabar com o Abrigo, vou morrer sabendo que foi criminoso. Foi sim. Esconderam a verdade. Posso dizer pois eu estava lá.
    Grande abraço.

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