O FOGO E O PODER
(Artigo de Murilo
Silva, publicado na página 145 do livro "Memórias do Abrigo de
Menores", de Alzemi Machado, publicado pela Fundação
Franklin Cascaes, em 2009)
Andando em lembranças, piso na praia de Jurerê, ainda
nacional, com diversas árvores à disposição dos piqueniques à beira mar. Hoje,
com tanta sofisticação em volta, usufruir desta regalia da natureza, mesmo sem
as aconchegantes sombras, é coisa de banhista farofeiro. Continuando a andança
saudosista subo costões ainda santinhos. Um cenário espetacular de rochedo e
mar, sol e lua, sem as luzes do imponente concreto, nem a frieza do ferro, do
lixo ou do luxo. No impulso da memória ganho a carona dos passeios de canoa no
interior de muitos mangues, o mergulho no mar e lagoas hoje proibido, o
mergulho na lembrança molhada de tudo aquilo permitido.
Nasci no bairro da Agronômica e lá fiquei durante 35
anos. Lembro-me da Ponta do Coral, um pedacinho de terra anexado à gigantesca
área do Abrigo de Menores, com seus saborosos pés de goiaba, araçá e pitanga e
exóticos eucaliptos – majestosos prendedores de pandorga. Lá gerações
promoveram encontros, jogos e piqueniques de escolas e famílias, com farofas,
bolas, bolos e mamadeiras. Que saudade das peladas nos campos do Abrigo,
identificados por números, acho que eram cinco ao todo, e o da “primeirinha”
ficava na Ponta do Coral. Saudades das extensas e organizadas hortas cultivadas
e colhidas pelos meninos sem famílias, sob a supervisão de seus tutores, os
Irmãos Maristas. Saudades do teatro e do cinema, da carpintaria e da sapataria,
do galinheiro e do chiqueiro.
Inocentes passeios saudosistas, gostosa brincadeira
infantil, transformam-se na revoltosa e insone lembrança do dia 31 de março de
1980. Poderia ter sido a imagem da comemoração dos 16 anos de golpe militar na
TV Globo, mas foi algo pior. Seria para mim um domingo como outro qualquer, se
não fosse à fogueira criminosa no interior do alojamento do Educandário 25 de
Novembro, o nosso Abrigo de Menores.
Desci as antigas escadarias da Servidão Epaminondas
bastante assustado com os berros que vinham de baixo. Uma cena terrível, que
jamais esquecerei. Rolos gordos de fumaça saíam pelas janelas de forma
contínua. A sinfonia do inferno estava ali formada. Sons misturavam-se ao calor
do fogo. Labaredas que lambiam e consumiam os parapeitos como línguas de
lagartos gulosos, seguidas de estalos da madeira que desabava do interior do
prédio. Gritos e muita correria. Pessoas entravam com as mãos na cabeça e saíam
segurando objetos, na tentativa de salvar qualquer coisa que encontrasse pela
frente. As gaiolas de canários abandonadas nas calçadas, demonstrava o grau de
solidariedade dos manezinhos passarinheiros do bairro. Eu, como um bombeiro
solidário improvisado, entrei ardido pelo calor insuportável e com os olhos
enfumaçados. Cego temporariamente, identifiquei dois quadros com o meu tato
apressado. Sai correndo, como um mecenas orgulhoso salvando a cultura
pictórica. Somente lá fora percebi que se tratava de dois retratos oficiais, um
do Presidente da República Federativa do Brasil, Excelentíssimo General João
Batista de Figueiredo, e outro do Excelentíssimo Governador do Estado de Santa
Catarina, Jorge Konder Bornhausen, este já chamuscado na testa.
Quem estava lá pode perceber algo estranho no ar, além
da fumaça. O fogo surgiu, meio sorrateiro, no momento tranqüilo da ausência de
pessoas no recinto. Naquele tempo não havia rebelião. De onde surgiu então a
centelha? O resultado de um inquérito policial que investigou a criminalidade
do incêndio aumentou o espectro duvidoso que ainda assombra o caso. Apesar dos peritos
terem encontrado no local derivados de petróleo, e da certeza de início de
combustão em mais de um foco, em 7 de abril de 1982, o Procurador Geral do
Estado solicita ao Juiz o arquivamento do caso, e em seguida o Estado recebe o
seguro.
Um pouco mais de quatro meses antes do incêndio,
precisamente em 19 de novembro de 1979, o Governo do Estado integra o terreno
da Ponta do Coral no patrimônio da Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor
(FUCABEM), órgão responsável pelo Abrigo de Menores. Dezoito dias antes do
incêndio, em 12 de março de 1980, a FUCABEM oferece o prédio como garantia de
hipoteca ao Banco de Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina (BADESC),
instituição avalista do empréstimo de 132 milhões de cruzeiros junto a Caixa
Econômica Federal. O objetivo da operação financeira foi a construção, no
município de Palhoça, do Centro Educacional Dom Jaime de Barros Câmara, dois
anos após a fogueira do Abrigo.
Abandonado durante anos, aquilo que o fogo havia
poupado foi parcialmente demolido, permanecendo apenas pequenos módulos. Seu
terreno foi retalhado e negociado. A entrada da Ponta do Coral – em 10 de
novembro de 1980 – foi cercada por arames farpados e portões com cadeados. Um
mês e seis dias depois, foi vendida para a empresa Carbonífera Metropolitana,
que mais tarde promoveu algumas “benfeitorias” no local, como a derrubada dos
pavilhões que abrigavam a antiga lavanderia do Abrigo de Menores – antigo
depósito de óleo durante a I Guerra Mundial –, cortou todas as árvores e
substituiu a antiga cerca por um muro cinza salpicado de vergonha.
Para mim, o incêndio no Abrigo de Menores foi um marco
de destruição da cidade, que entrou há pouco mais de 25 anos na lógica
imobiliária insensata, acinzentando nosso verde e esverdeando sua moeda.
Murilo, tudo bem? Pois é, estava lendo o que escreveu sobre o incêndio do Educandário e te digo uma coisa: foi sim criminoso. Eu estava lá, eu era interno.Naquele domingo pra nossa curiosidade, aqueles meninos, como eu, resolvemos não sair pra um passeio (meio estranho) promovido pela direção da instituição bem cedinho. Ficamos num grupo no dormitório, arrumando as coisas, pois a maioria dos meninos de minha turma trabalhava. Os que foram passear eram da primeira e segunda turma e parte da terceira. Seu Adilson ( ainda vivo) e ex- interno do local era o Monitor daquele dia. Muito estranho, estranho mesmo, aquele incêndio ter ocorrido e derrepente e sem motivo algum. Quando estávamos reunidos no dormitório, o seu Mazico, dono de uma venda na frente do Abrigo começou a gritar lá de baixo dizendo que havia fumaça saindo do último andar. Corremos, chamamos o seu Adilson e ele arrombou a porta e nada pôde fazer. O que mais me chamou a atenção foi a presença rápida de todas as autoridades naquele domingo,incluindo até o Jorge Bornhausen, o mesmo que queria tirar os menores dali. Estranho, né? Eu perdi tudo, roupas, documentos, fotos, dinheiro e saí com a roupa do corpo. Fomos alojados lá perto do teatro por alguns meses. Passados esses anos todos, e, com objetivo dos governantes em acabar com o Abrigo, vou morrer sabendo que foi criminoso. Foi sim. Esconderam a verdade. Posso dizer pois eu estava lá.
ResponderExcluirGrande abraço.