sábado, 19 de abril de 2014

Almas de Lata

(texto de Murilo Silva, publicado no Jornal A Notícia - AN capital - 06/07/2003 - Domingo)

Fonte: http://blogs.diariodepernambuco.com.br/

Alguns pensadores filosofam sobre o automóvel. Eduardo Galeano, na revista "Atenção", chega a cunhar a expressão "automovelcracia" apontando, entre outras coisas, que em Los Angeles os automóveis ocupam mais espaços que pessoas. Com algumas exceções, é assim nas grandes cidades. O ícone de lata do século 20, provoca a paixão de seu dono junto de uma tola e cega arrogância, com a posse de um bem que revela poder, rapidez, conforto e sensualidade. 

Dia destes, o noticiário de uma emissora de TV divulgou a aprovação de um projeto de lei, do deputado Afrânio Boppré, que institui o "Dia Catarinense Sem Carros". A matéria explica que a adesão ao não uso de carros é voluntária e será todo o dia 22 de setembro. No projeto está prevista a participação do Executivo durante todo o ano, mas na promoção de campanhas que estimularão os cidadãos a não usarem os carros, pelo menos com tanta freqüência, e especialmente no primaveral dia 22 andar a pé, de bicicleta, de moto ou ônibus. Isto já é praticado em mais de 158 cidades européias.

Sintonizado no mesmo canal, assisto ao comentário de que o projeto "é uma bobagem". Um dia após a versão eletrônica, a grosseria ocupou o editorial de uma coluna impressa. Menos boçal, destacou a boa intenção do deputado, porém ressaltou que o projeto é paliativo, pois caberia aos governantes a oferta de outros meios de transporte e que os motoristas são apenas vítimas. Continuou cometendo injustiça. Suprimiu sua força legislativa maior: a reflexão acerca da nossa mobilidade urbana. 

Santa Catarina ocupa o segundo lugar no Brasil em acidentes de trânsito. Verdadeiras armaduras de lata, os carros matam mais que guerras. Para cada óbito no trânsito, ficam outras três pessoas com seqüelas. O acidente que mais óbito causa: atropelamento. O que é dotado de alma e não é motorizado, foi esquecido. Nos três últimos anos, 449 jovens de até 14 anos morreram no trânsito. No mesmo período, se ampliarmos a conta incluindo os de 15 a 24 anos, o número salta para 1.071, próximo a um jovem morto por dia em Santa Catarina. 

Imaginem uma pausa nisto tudo. Uma segunda-feira com pontes, viadutos, via expressa e avenidas com bicicletas (são 15 milhões pedalando diariamente no Brasil e mais outros 35 milhões eventuais), ônibus, táxis, e pedestres num fluxo tranqüilo e satisfatório. O cidadão mais atento, além do espaço livre, notará a diferença nos pulmões e nos ouvidos. A descarga fumegante de gás carbônico (CO2) dos carros particulares somam 40% do total produzido pelo transporte automotivo. Até os crepúsculos do dia 22 de setembro serão mais fulgurantes sem a turva fumaça. Ouvirá os sons da saracura, do martim pescador e do urbano bem-te-vi. As gaivotas serão percebidas em pleno centro, como fazem algumas vezes durante o dia, decolando do trapiche da beira mar, num sobrevôo à Praça 15 de Novembro rumando para o Saco dos Limões. 

O "Dia Catarinense Sem Carros" é mais uma medida paliativa? Não! É um projeto educativo e tem repercussão visual impactante. Paliativo no trânsito pode ser desde a sinaleira até os caríssimos elevados, frutos da falta de visão de futuro camuflada em visão futurista. A adesão ao dia sem carros não acabará com o trânsito caótico em Santa Catarina, ressaltará sim o caos em que ele se encontra. O projeto é um veículo pedagógico importantíssimo, promotor da conscientização dos usuários do carro, e convergente com a necessária implementação de uma nova política de mobilidade urbana, onde a proteção ao pedestre e ao meio ambiente deve ser prioritária.

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